Portugal
Há muitos exemplos de secas que provocaram colapsos e transições civilizacionais.
16 de novembro de 2017
No Egipto, o ciclo exterior mais importante, para além do movimento
aparente diurno do Sol, era a cheia anual do Nilo que inundava e fertilizava os
campos preparando-os naturalmente para as culturas agrícolas essenciais à vida
das populações. As três estações do ano correspondiam às três fases
fundamentais daquele ciclo. A primeira, chamada Akhet ou
inundação, começava com a inundação cíclica do vale do Nilo no princípio do
Verão provocada pelas chuvas das monções na região da Etiópia e do alto Nilo e
durava de Junho a Setembro. A segunda, chamada Peret ou
crescimento, era o período das sementeiras, do ressurgimento da vida vegetal e
animal e coincidia com os meses de Outubro a Janeiro. Finalmente, Shemu ou
águas baixas era a fase das colheitas de Fevereiro a Maio.
Embora o início da cheia anual do Nilo fosse previsível, a altura máxima
que as águas atingiam era muito variável e imprevisível. Cheias muito altas
eram destrutivas e podiam devastar povoações e infraestruturas ribeirinhas. Em
contrapartida, as cheias fracas diminuíam a produção agrícola e podiam causar a
fome generalizada. O progresso da cheia era essencial para planear o novo ano e
provavelmente para calcular o valor dos impostos nesse ano.
Os sacerdotes dos templos alimentavam a fama de predizerem a altura das
cheias anuais e mediam a altura das águas do Nilo por meio de nilómetros.
Alguns deles perduraram até à atualidade, tais como os de Elephantine, Edfu,
Esna, Kom Ombo, Dendera e Thmuis. São formados por corredores com escadarias
que conduzem ao rio e cujos degraus vão ficando submersos com o avanço da cheia
ou poços ligados por um túnel ao rio e acessíveis também por uma escadaria. Os
nilómetros foram usados durante mais de 5000 anos e existem registos escritos
do nível das águas do Nilo durante grande parte desse período, especialmente
nos últimos 14 séculos. A análise destes dados permitiu concluir que a
variabilidade das cheias no Nilo está correlacionada com o fenómeno da
Oscilação Sul – El Niño.
A monção da África Oriental é a principal origem da precipitação que
alimenta o Nilo através das águas do Nilo Azul. Na situação de El Niño,
as águas do Pacífico equatorial leste estão anormalmente quentes, o que gera
movimentos ascensionais na atmosfera e chuvas intensas, enquanto na região
ocidental, incluindo o Índico, geram-se movimentos descendentes anómalos que
enfraquecem a monção e provocam secas no planalto da Etiópia, onde nasce o Nilo
Azul, e caudais muito baixos no Nilo Azul e no Nilo. Com a construção de
barragens, o nível das águas do Nilo deixou de estar correlacionado com o El
Niño, mas a análise dos registos históricos das cheias desde o ano de 622
permite concluir que a maior frequência de eventos de El Niño observada
desde os finais da década de 1970, durante cerca de quatro décadas
consecutivas, relativamente aos períodos anteriores, é provavelmente uma
anomalia provocada pelas alterações climáticas antropogénicas (Trenberth,
1996). Projeções baseadas em cenários climáticos indicam que os eventos
extremos de El Niño e de La Niña se vão
tornar progressivamente mais frequentes com as alterações climáticas (Wang,
2017).
Após o final do Império Antigo, cerca do ano de 2150 a.C. e durante duas ou
três décadas, as cheias do Nilo diminuíram drasticamente, as areias invadiram
parte do vale do rio, o lago de Faiyum secou, os solos do delta degradaram-se,
a fome estendeu-se por todo o Egipto e paralisou as instituições políticas,
semeando o caos. Na parte biográfica das inscrições do túmulo de Ankhtifi,
governador de Edfu e Hierakonpolis na IX dinastia, lê-se que “todo o país ficou
como se fossem gafanhotos à procura de comida”. As pessoas eram levadas a
praticar atrocidades tremendas devido à fome, incluindo, muito provavelmente, o
canibalismo. Houve templos vandalizados e saqueados e estátuas destruídas. A
governação centralizada do faraó colapsou e os governadores das várias regiões
passaram a assumir o poder a nível local e a guerrear-se. Iniciou-se o chamado
Primeiro Período Intermediário da história do Egipto. Porém, passados cerca de
100 anos, a governação centralizada ressurgiu com a reunificação do Egipto
realizada pelo faraó Mentuhotep II, cujo reinado iniciou o Império do Meio e
durou de 2055 a 1650 a. C.
A profunda crise que afetou o Egipto gerou um novo quadro político
caracterizado por uma maior sensibilidade para as questões sociais, a
misericórdia e a compaixão. Esta terá sido provavelmente a primeira vez na
história das civilizações que um governo, baseado numa hierarquia forte e
centralizadora, adotou, embora sob uma forma embrionária, conceitos sociais de
equidade que impunham ao faraó proteger os mais fracos e pobres na sociedade,
especialmente em períodos de adversidade. Mais tarde, estes conceitos e
práticas floresceram sob diversas formas com o cristianismo e o islamismo. Uma
das manifestações mais claras da transição para novas formas de igualdade foi
tornar a imortalidade acessível a todos e não apenas ao faraó e às elites dos
dirigentes e sacerdotes. A fórmula encontrada foi considerar todos iguais
assumindo que, para efeitos de acesso à imortalidade, cada um é um faraó. Os
detalhes práticos sobre como aceder à imortalidade estavam escritos no interior
dos sarcófagos.
Dados paleoclimáticos revelam que entre 2350 e 1850 a.C. houve períodos de
secas severas em várias regiões do mundo, uma das quais originou os níveis
muito baixos do Nilo no Egipto a partir de 2200 a.C. Outras regiões afetadas
foram a América do Norte, o Mediterrâneo, o Médio Oriente, África Oriental,
Índia e a China. É muito provável que essas secas tenham sido a causa principal
do colapso do Império Acádio na Mesopotâmia e da cultura Liangzhu, a última do
jade no delta do rio Iangtzé, na China, na região onde hoje está Xangai. A
mudança climática para um clima mais seco há cerca de 4200 anos deu-se também
na Península Ibérica na Idade do Bronze e está na origem de umas construções
intrigantes em pedra que se encontram na região de Castilla La Mancha, em
Espanha, próximo de Ciudad Real, chamadas Motillas. Investigações
arqueológicas nos últimos anos levaram à conclusão que as Motillas eram
edificações destinadas a aproveitar as águas subterrâneas e a armazenar água e
cereais numa época de grande aridez. Na Motilla de Azuer encontrou-se
um poço com cerca de 4000 anos, provavelmente o mais antigo da Península, que
permitia ir buscar água a um nível freático profundo. A construção dos poços na
cultura das Motillas foi uma solução de sucesso para fazer
face à seca, que contribuiu para impulsionar a transição para uma sociedade
mais complexa e estruturada. Quanto à origem do evento climático de seca de há
4200 anos sabe-se ainda muito pouco. Poderá estar relacionado com variações da
temperatura superficial no Oeste do Pacífico, Índico e no Atlântico Norte.
Há muitos outros exemplos de secas que provocaram colapsos e transições
civilizacionais. No período de 750 a 900 d.C. deu-se o colapso da civilização
Maia Clássica que resultou em parte de períodos de seca prolongados. Situação
análoga deu-se com o Império Tiwanaku entre 1000 e 1100 d.C. e com o Império
Khmer baseado em Angkor, no Camboja, nos séculos XIV e XV.
Recentemente houve uma seca na região da Síria que durou 15 anos, de 1998 a
2012, tendo sido a mais intensa dos últimos 500 anos (Cook, 2016). As suas consequências
contribuíram para criar as condições que levaram à guerra civil iniciada em
março de 2011, que matou entre 331 e 475 milhares de pessoas e levou cerca de
5,1 milhões de refugiados a abandonarem a Síria.
Devido às alterações climáticas antropogénicas, a média decadal da
precipitação anual tem estado a diminuir no Mediterrâneo, especialmente na
Península Ibérica, Península Balcânica e região do Médio Oriente, onde se
encontra Israel, Jordânia, Palestina e Síria. As secas estão a tornar-se mais frequentes
e prolongadas e a seca na Síria insere-se nesta tendência, que tende a
agravar-se. A severidade da seca que afeta atualmente grande parte da Península
Ibérica é muito provavelmente mais uma manifestação das alterações climáticas.
Nos últimos 13 meses, desde outubro de 2016 a outubro de 2017, não houve um
único mês em que uma parte de Portugal Continental não estivesse na situação de
seca. O melhor mês foi março de 2017, em que apenas algumas regiões tinham seca
fraca. Em Portugal, a seca é já gravíssima e não sabemos quando irá terminar.
Pode chover abundantemente este inverno ou haver apenas chuva fraca. As
consequências desta última hipótese são preocupantes e urge estar preparados
para as enfrentar. Aquilo que sabemos com bastante segurança é que se o Acordo
de Paris não for cumprido, o centro e sul da Península Ibérica irão tornar-se
perigosamente áridos. É necessário adaptar-nos às alterações climáticas e
termos planos de contingência de médio e longo prazo adequados para diversos
cenários futuros.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
FONTE:
https://www.publico.pt/2017/11/16/ciencia/opiniao/secas-que-transformaram-civilizacoes-e-a-seca-em-portugal-1791821/amp#
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