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quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O escândalo "Ballet Rose"

Faz agora 50 anos. Em dezembro de 1967, o inglês “Telegraph” noticiou que altas figuras do governo de Salazar e da alta sociedade portuguesa estavam envolvidos num escândalo de abuso sexual de menores. Mário Soares, acusado de ser a fonte da notícia, foi preso e deportado para São Tomé. Três meses antes da notícia vir a público, Antunes Varela, o ministro da Justiça que não quis abafar o processo, é exonerado por Salazar. Havia menores com nove anos envolvidas nas orgias.

O ano de 1967 aproximava-se do fim. Barry O’Brien, jornalista do britânico “Telegraph”, subiu até ao 2º andar do número 87 da rua do Ouro, Lisboa, onde ficava o escritório que Mário Soares partilhava com os amigos advogados Gustavo Soromenho e Pimentel Saraiva. Tinha ouvido falar de um escândalo de prostituição de menores, que envolvia altas figuras do regime de Salazar. 




Soares também tinha ouvido falar do mesmo assunto, através de um escrivão do tribunal da Boa-Hora, segundo contou numa entrevista ao i em 2009. “Um belo dia estava na Boa-Hora e apareceu-me um escrivão que me disse: ‘Ó sr. doutor, tenho uma coisa para lhe dizer. Há aqui um processo que é uma escandaleira contra estes malandros do regime! É este, aquele, aqueloutro’. Fiquei a saber. Um dia ou dois depois, apareceu-me um jornalista inglês, que eu não conhecia, mas veio ter ao meu escritório porque colegas portugueses lhe disseram que eu era da Oposição (...) Disse-me que queria saber o que era isso do escândalo dos Ballet Rose (...) Disse-lhe que só tinha uns zunzuns, mas que podia apresentá-lo a um escrivão que poderia dar-lhe mais informação”. Soares também terá sabido do caso através de Joaquim Pires de Lima, advogado de uma das vítimas, com quem jantou em casa de Sophia de Mello Breyner e Francisco Sousa Tavares, que também acabará por ser preso na sequência do escândalo internacional.



Ainda que Soares tenha sempre negado ter sido a fonte da notícia que depois é publicada no “Sunday Telegraph” a 10 de dezembro – o próprio jornal escreverá outra notícia a negar que Soares tenha sido a fonte das informações sobre o escândalo – , é preso pela PIDE três dias depois acusado de “divulgação de notícias falsas, no estrangeiro, suscetíveis de prejudicar o bom nome de Portugal”. Passa o Natal e o fim do ano de 1967 numa cela de isolamento em Caxias “com um frio atroz. Não tinha livros nem, muito menos, jornais”. 

Apesar de ter conseguido ser libertado cerca de dois meses e meio depois, através de um habeas corpus apresentado pelo advogado José Magalhães Godinho, Soares é enviado para o exílio quase imediatamente. O Conselho de Ministros decide a deportação para São Tomé. Na sede da PIDE, o subdiretor Sachetti explica a Soares a ordem de expulsão, falando de si próprio na terceira pessoa: “Julga que José Sachetti é burro? Mandá-lo a tribunal, com a montagem sempre possível de um grande espectáculo e observadores estrangeiros, para o senhor, ainda por cima, vir de lá absolvido? Não! José Sachetti não é burro: assim fica definitivamente neutralizado. O senhor Mário Soares como opositor acabou-se. Até nós querermos!”.

Segundo Mário Soares, o subdiretor Sachetti deu-lhe ainda outra explicação para a deportação, como contou Mário Soares a Joaquim Vieira, autor da biografia “Mário Soares, Uma Vida”: “Ele disse-me: ‘o doutor Salazar está farto que ande a brincar com ele (...) Injuriou-o na sua moral, isso é que ele não admite”.

Joaquim Pires de Lima, advogado, conta  a sua intervenção no processo em entrevista a Anabela da Mota Ribeiro: “Tudo começou quando uma moça dos seus 16 anos me procurou, com a mãe e o namorado, porque estava a ser apertada na Polícia Judiciária para prestar declarações. Acerca das razões que a levavam a casa de uma senhora modista, que era tida como uma desencaminhadora de menores. E para identificar os indivíduos que estavam relacionados com essa senhora. Tinha receio que a levassem presa.”

Joaquim Pires de Lima telefona “ao director da Polícia Judiciária, com quem tinha boa relação, bem com ao Antunes Varela. Provoquei um grande escândalo dizendo que com a minha cliente, à PJ, ia eu! Não conhecia o instrutor do processo. Mais tarde detectei quem ele era; era um que estava ligado ao assassinato do [Humberto] Delgado, o agente Parente. Quando soube, denunciei-o. Obriguei a miúda a dizer os nomes de toda a gente. Ficou a saber-se que desde os nove anos andava a ser aproveitada por indivíduos como o Conde Monte Real, o Conde Caria, o Conde da Covilhã, uma data de gente da alta sociedade”.

Ainda Joaquim Pires de Lima: “Quando se soube a idade das meninas envolvidas, percebeu-se que isto não era um processo de Ballet Rose à maneira do caso Profumo [Inglaterra], cuja mais nova tinha 17 anos, mas um processo de corrupção de menores, com impúberes de nove anos. E miseráveis. Filhas de mulheres-a-dias. Eu queria que a PJ instaurasse um processo-crime contra os corruptores de menores”. 

Não conseguiu. Salazar manda parar a investigação quando percebe que o abuso sexual de menores envolve grandes figuras do regime. Três meses antes do escândalo ser denunciado na imprensa estrangeira, o ministro da Justiça da época, Antunes Varela, que queria que a investigação fosse até ao fim, é exonerado por Salazar. 



Os violadores de crianças nunca serão condenados. O processo acaba com a condenação de duas prostitutas e absolvição de dois dos abusadores levados a tribunal. Em 1975, o escritor Amadeu Lopes Sabino escreve, sob o pseudónimo ”Marta Castro Alves”, o livro “O processo das virgens – aventuras, venturas e desventuras sexuais em Lisboa nos últimos anos do fascismo”. Mesmo depois do 25 de abril, Portugal nunca lidou bem com o escândalo. Perante a quantidade de pessoas envolvidas – e vivas – manteve-se algum “estado de negação”.

Fonte:
https://ionline.sapo.pt/593589

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