O almirante Cândido dos Reis deveria ter sido o chefe militar da revolução republicana, mas ao julgar que tinha falhado, suicidou-se. Neste ensaio, Rui Ramos explica-nos quem era esta figura trágica.
O almirante Reis é hoje um detalhe toponímico. Nunca foi muito mais, para a maioria dos portugueses. Só depois de morto, o país reparou no seu retrato de ar aparentemente zangado e longos bigodes caídos.
O papel previsto para o almirante (aliás, vice-almirante), na insurreição republicana iniciada em Lisboa à uma da manhã de 4 de Outubro de 1910, era comandar a marinha de guerra, que se esperava fosse a força decisiva da revolução. Nessa noite, porém, tudo correu mal.
Como combinado, o almirante esperou no Cais da Viscondessa transporte para os navios de guerra fundeados no Tejo – os cruzadores S. Rafael, Adamastor e D. Carlos. Vestia farda de gala por debaixo do sobretudo. À hora marcada, não encontrou o barco previsto, acabou por tentar embarcar noutro, que não estava pronto para navegar, e por fim vieram dizer-lhe que tudo falhara. Ter-se-á encontrado a seguir (mas os testemunhos são aqui contraditórios) com alguns líderes republicanos e confirmado, de automóvel, que nada parecia estar a acontecer em Lisboa. Acabou por se recolher à casa de uma irmã, na rua D. Estefânia. Durante a madrugada, concluiu provavelmente que a aventura revolucionária só servira para o comprometer.
Tinha 58 anos, era viúvo, estava reformado (desde Junho de 1909). De manhã cedo, apareceu morto na travessa das Freiras, em frente ao hospital de Arroios. Matara-se com um tiro de pistola.
Uma revolução sem chefes.
O almirante Reis nunca soube que os navios de guerra acabaram mesmo por se revoltar e que umas centenas de sargentos e de soldados insurrectos, acampados na Rotunda (hoje praça Marquês de Pombal), resistiriam o tempo necessário para a monarquia constitucional se desconjuntar. Reis era o “chefe militar” da revolução. Por isso, na Rotunda, Machado Santos, prevendo o efeito desmoralizador do suicídio, não hesitou em esconder a notícia aos seus companheiros. Um outro grupo de revolucionários, reunido no jornal republicano a Luta, fez mais: mandou imprimir um panfleto a anunciar que “o vice-almirante Reis está à frente das tropas da marinha”. Em Lisboa, no dia 4 de Outubro, muita gente acreditou que era Reis quem dirigia a revolução.
Os funerais de Cândido dos Reis, a 16 de Outubro, constituíram as primeiras grandes cerimónias da república. O outro homenageado nessa ocasião foi o médico Miguel Bombarda, considerado o “chefe civil” da revolução. Assassinado por um doente na manhã de 3 de Outubro, Bombarda também não chegou a ver a revolução. A revolução republicana de Outubro de 1910 teve, assim, a estranha sina de perder logo ao princípio os seus dois principais líderes. Alguns correligionários suspeitaram de atentados. No caso de Reis, a hipótese de suicídio foi sustentada por um estudante que lhe dedicou uma tese defendida na Faculdade de Medicina de Lisboa em Dezembro de 1911.
“Sigam-me, se quiserem”
Sem Reis ou sem Bombarda, é muito provável que a revolução republicana não tivesse acontecido em Outubro de 1910. Nas suas memórias, os revolucionários lembram o almirante como um homem sempre exaltado, sempre desesperado com as demoras, as hesitações, os equívocos dos outros conspiradores.
No Verão de 1909, o directório do Partido Republicano encarregara o almirante de recrutar oficiais na marinha e no exército para um golpe armado contra a monarquia constitucional. A conspiração explorou as redes maçónicas a fim de solenizar segredos e cumplicidades. Reis, que era maçon, assumiu até o posto de “inspector da carbonária”. Mas nada foi fácil. Quase todos os oficiais tinham relutância em comprometer-se e, uma vez comprometidos, passavam logo a votar pelo adiamento de todas as iniciativas.
Reis fez então a diferença. Na última reunião dos conspiradores, às oito meia da noite de 3 Outubro, foi o mais decidido. O governo pusera a guarnição de Lisboa de prevenção. Havia quem achasse que tudo devia ser adiado. Reis, extremamente exaltado, contrariou a tendência: “Havendo um só que cumpra o seu dever, esse único serei eu!” E avisou os líderes do Partido Republicano que, se fosse preciso, faria tudo sozinho, sem eles: “Sigam-me, se quiserem!” Toda a gente se calou, e foi só naquele momento que a insurreição se tornou inevitável.
Dissidentes da elite liberal
Reis não era um líder do Partido Republicano, daqueles que andavam havia vinte ou trinta anos na imprensa e em comícios a acusar os reis e os padres. Tinha “ideias republicanas”, como então se dizia, era maçon, dava-se com jornalistas republicanos, mas nada disso o impedira de fazer uma carreira cheia de promoções e de condecorações na marinha, com serviço nas colónias. Como muitos “republicanos teóricos”, talvez tivesse estado disposto a admitir que a monarquia constitucional podia servir para a gradual republicanização do país através da propaganda, que aliás ninguém lhe proibia. Segundo testemunho de João Franco, o rei D. Carlos estimava-o, achava-o um “homem de bem”.
Mas por fim, o almirante convenceu-se da urgência de uma ruptura com a oligarquia partidária que dominava o regime constitucional. Antes de pensar que essa ruptura se devia fazer pela república, parece ter admitido uma “ditadura liberal” encabeçada pelo próprio D. Carlos, a que apelou em 1902. Mas em vez dessa ditadura, apareceu o governo de João Franco, que Reis viu como mais uma manobra oligárquica. Terá sido então, por volta de 1907, que passou a conspirar, mas sempre com o cuidado de ressalvar a hierarquia militar e a preeminência dos oficiais, de modo a manter o máximo de ordem dentro da revolução. Isto é importante para perceber que a república não correspondeu simplesmente ao agigantar de um partido, mas a um sentimento de alienação que se desenvolveu dentro da elite liberal da monarquia e que, à falta de alternativa, encarnou na mitificação de uma nova forma de Estado como meio de redenção nacional.
Miguel Bombarda, o “chefe civil” da revolução de 1910, é mais um exemplo desse movimento de opinião. Bombarda, quase da mesma idade que Reis, também não era militante do PRP. Era um crente na ciência como única base legítima do conhecimento, e como tal inimigo do clero católico tradicionalista, especialmente dos jesuítas. Isso não o impedira de ser deputado da monarquia e de apoiar o primeiro governo nomeado por D. Manuel II em 1908. Só se entregou à revolução em 1909, quando julgou perceber que a influência clerical apenas poderia ser desfeita através de uma mudança de regime.
Bombarda ajudou a pôr as lojas maçónicas a proteger a conspiração republicana. Reis, pelo seu lado, foi a ponte dos revolucionários para chegar a muitos oficiais das forças armadas. Ambos ajudaram a criar no “meio burguês”, como disse José Relvas, um ambiente favorável à revolução.
Vitória ou morte
O suicídio de Reis é também significativo. Um revolucionário profissional teria continuado. Ele não o era. Estava reformado desde 1909, não dispunha do comando de tropas. O seu papel foi falar com oficiais da armada e do exército, convencê-los. Muita gente hesitava. Ele teve de se empenhar, de dar garantias. Tinha uma reputação de “austeridade”, de vida “espartana”.
Com Cândido dos Reis, tudo era muito sério e muito simples. Era um homem de opções violentas, que não aceitava calculismos nem transigências. Durante a conspiração, admitira várias vezes a possibilidade de suicídio, no caso de um fracasso. Era “vitória ou morte”, como gostava de repetir a cada reunião. Por isso, ressentiu imenso o facto de a revolução, esse acto que deveria ser singelo e directo, estar enredada na teia de manobras políticas do Partido Republicano.
Em 1910, alguns dos líderes do partido, como Afonso Costa ou Bernardino Machado, hesitavam em recorrer à violência, devido às suas cumplicidades com o último governo da monarquia, muito virado à esquerda. O que quer dizer que os conspiradores tiveram de contar, não apenas com a vigilância policial, mas com a falta de colaboração de parte dos republicanos.
Na madrugada de 4 de Outubro, o almirante não deve ter suportado a ideia da prisão (“acabar numa esquadra de polícia, nunca”), do julgamento, da deportação. Mais do que os tribunais da monarquia, receava provavelmente a imprensa republicana, que havia de o culpar pela precipitação e pelo fracasso do golpe. De facto, arrastara muita gente para o que, afinal, seria apenas uma farsa patética. Lembrava-se certamente de como terminara a sublevação do 31 de Janeiro de 1891, no Porto, com a imprensa republicana a renegar a iniciativa e os presos a acusarem-se uns aos outros. A Machado Santos, seu amigo, dissera várias vezes: “Se formos vencidos, os que se dizem republicanos, para que o não suspeitem, comandarão, como os outros, os pelotões de fogo que nos hão de fuzilar”. A revolução tinha sido uma aposta falhada, e que só podia emendar com um acto extremo que, mais uma vez, provasse a sua seriedade.
O mesmo, aliás, ocorreu a Machado Santos na Rotunda, por volta das oito da manhã, quando todos os oficiais e metade dos soldados fugiram, e não se via na cidade qualquer sinal da revolta popular prevista: “cheguei a pensar no suicídio”. Depois, pensou também nos sargentos e soldados que tinham escolhido continuar com ele. Não os podia abandonar. E ali ficou, com apenas 9 sargentos e menos de 200 soldados, para fazer a revolução que, naquele momento, mais ninguém em Lisboa dava mostras de querer.
O suicídio do almirante não é, portanto, um detalhe folclórico. Sugere como, para todos os comprometidos, a república não era inevitável. Os nove oficiais do exército que deviam ter comando as tropas concentradas na Rotunda não se suicidaram, mas fugiram todos. Os líderes do Partido Republicano esconderam-se, desapareceram: a maioria só tornou a ser vista na tarde do dia 5 de Outubro, já depois de proclamada a república, quando apareceram na Câmara Municipal para reclamarem os lugares no Governo Provisório.
A morte de Reis revela ainda o carácter caótico da conspiração. Estavam comprometidas várias “carbonárias”, vários grupos de militares do exército e da marinha, cada qual com os seus contactos e a sua agenda. Ninguém, de facto, fazia uma ideia completa da conjura. As comunicações também não eram boas, perturbadas pelo secretismo conspirativo e pelos acasos dos encontros. Foi assim que Reis se viu sozinho na madrugada do dia 4 e acreditou que tudo falhara. Mas este caos também salvou a revolução. Se a conspiração tivesse tido uma estrutura centralizada, dirigida por Reis, a sua morte poderia ter comprometido tudo. Assim, alguns dos outros revolucionários puderam agir por conta própria, como Machado Santos na Rotunda, ou os jovens oficiais da marinha, entre os quais o segundo-tenente José Carlos da Maia, que finalmente tomaram conta dos navios de guerra no Tejo.
A tragédia dos heróis
A morte dos dois “chefes”, Miguel Bombarda e Cândido dos Reis, teve consequências. Mais uma vez, não estamos perante uma curiosa nota de rodapé da história. O movimento e a conspiração que levaram ao 5 de Outubro não tinham sido simplesmente uma obra do Partido Republicano. Corresponderam antes à divisão e à alienação das elites da monarquia constitucional. A revolução também não foi feita pelos grandes líderes do Partido Republicano, mas organizada por dissidentes da monarquia, como Bombarda, e consumada por activistas desconhecidos, como Machado Santos.
Bombarda e Reis, vivos, teriam certamente sido membros do novo governo. Sem os seus “chefes”, a revolução acabou por cair completamente nas mãos daqueles que eram os caciques do Partido Republicano, como Afonso Costa.
Machado Santos e José Carlos da Maia, tal como Bombarda e o almirante Reis, não tinham feito a república para entregar o Estado a um partido. Não se tinham arriscado pelo Partido Republicano, mas por um novo regime que se relacionasse de modo diferente com o país, sem o sectarismo dos partidos da monarquia. Mas Machado Santos, simples comissário naval, não tinha o prestígio social e científico de Bombarda, nem José Carlos da Maia, simples segundo-tenente, os galões de vice-almirante de Cândido dos Reis. Viram, rapidamente, o Partido Republicano apossar-se do Estado, com um facciosismo muito mais violento do que qualquer situação partidária anterior a 1910. A morte de Cândido dos Reis e de Bombarda transformou aquilo que tinha sido um movimento revolucionário aberto num regime partidário exclusivista.
Machado Santos e José Carlos da Maia, ambos íntimos de Cândido dos Reis durante a conspiração de 1910, nunca se conformaram. Os seus contemporâneos acharam-nos “românticos”. Tornaram-se, nos anos a seguir a 1910, os maiores inimigos de Afonso Costa, o chefe republicano que, à frente da “esquerda” do Partido, reduziu a república uma espécie de propriedade privada sua. Repetidamente, lembraram que aquela não era a república por que haviam arriscado a vida em Lisboa em Outubro de 1910. Afonso Costa, que gostava de acusar todos os seus adversários de “monárquicos”, ressentiu especialmente a oposição que lhe faziam aqueles a quem, muito a contragosto, tinha de reconhecer o título de “fundadores da república”. Entre 1911 e 1918, Machado Santos e José Carlos da Maia alinharam com todos contra Afonso Costa. Estiveram com a chamada “direita republicana”. Juntaram-se a Sidónio Pais em Dezembro de 1917.
Pagaram por essa insistência a 19 de Outubro 1921, durante a famosa “noite sangrenta”, quando a esquerda republicana ajustou contas com os seus inimigos. José Carlos da Maia e Machado Santos, os heróis do 5 de Outubro, foram assassinados nessa noite, tal como o então líder da direita republicana, António Granjo. O almirante Reis ter-se-ia quase certamente revoltado também contra o domínio da república por Afonso Costa. Talvez a tragédia de 4 de Outubro o tenha apenas poupado à tragédia de 19 de Outubro, onze anos depois.
Fonte:
https://observador.pt/especiais/candido-dos-reis-o-almirante-tragico/
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